sábado, 28 de janeiro de 2012

...

Ela não sabia que horas eram, tampouco onde estava. O que lembrava da noite anterior eram fragmentos de risos, conversas, e o que aconteceu depois daquela festa, que já havia se tornado obrigatória em sua rotina.

Algumas horas atrás (ou talvez dias, semanas, meses... afinal, quanto tempo uma pessoa poderia sobreviver sem comida ou contato humano, fechada em um lugar escuro e pequeno?) ela se divertia com amigas em um pequeno clube da capital. Sua mãe, claro, não sabia onde a filha estava, e nem se importava, afinal, mentia tanto para a pobre dona de casa, que ela já fingia que sua prole não existia, para se livrar da dor de ter criado uma, como dizia ela, “perdida”.

Mas aquela festa foi diferente. Drogas mais pesadas, gente que nunca frequentaria a escola particular e cara que os pais dela pagavam... foi na volta para casa que tudo aconteceu, e inacreditavelmente, ela lembrava-se daquela parte da noitada.

Alice foi a primeira a perceber, mas bebera mais que as amigas que a acompanhavam, e, portanto tinha os reflexos mais lentos. Todas as outras correram, mas ela acabou por deixar-se vencer. Um homem, de altura e largura descomunal, saiu de um beco que continha latas de lixo. Provavelmente estivera ali a noite inteira, somente à procura de vítimas, e encontrara a perfeita. A menina estava tão tonta que por sorte não desmaiou ao ter a desagradável surpresa. Obviamente isto não fora o suficiente para lhe dar a oportunidade de fugir, pois o homem, de jeito nojento como os motoristas de caminhão que costumavam buzinar e gritar coisas sujas quando elas e as amigas passavam, e corpulento como um jogador de futebol americano aposentado, estava preparado, com um pano embebido em uma solução que faria o mais forte dos homens desmaiar.

E agora ela acordara ali, com as roupas rasgadas e uma terrível e assustadora (mais assustadora que uma ressaca normal, com as quais já estava tão acostumada) dor de cabeça.

Sentira também uma dor na região da virilha, e, ao olhar para baixo, descobrira uma grossa e escura mancha de sangue.

Parecia que sua capacidade de assimilar os fatos a abandonara naquele momento, e suas pernas começaram a tremer e ameaçaram lhe deixar na mão, quando a ideia de estupro passou por sua cabeça.

Acontece que coisas ruins nunca acontecem com ela, somente com pessoas menos espertas, jovens e bonitas. Pessoas que vivem na miséria e que têm suas casas alagadas todo o ano pelas chuvas da época. Mas ela era melhor que isso, era especial demais para ter esta experiência em sua ficha.

Fechou os olhos e comprimiu a boca ao pensar nisso. Não era possível, ela ainda deveria estar bêbada, e agora estava tendo ilusões.

Mas não adiantava tentar. As dores eram reais demais para serem ilusões, não conseguia enganar-se.

Sua mãe!_ pensou ela, com uma pontinha de esperança_ sua mãe certamente iria procurar por ela. Deveria estar procurando neste momento, afinal, que mãe não ficaria desesperada ao perceber que a filha não voltara para casa?

Mas esta ideia foi embora, assim que ela percebeu que fizera isto tantas vezes_ passava semanas fora de casa, sem explicações coerentes, a não ser “minha melhor amiga agora tem uma casa de praia”_ que nem mesmo a mãe mais coruja e super protetora daria atenção ao evento.

As amigas! Elas a viram sumindo, estavam lá quando fora sequestrada!

Mas correram para livrar-se, e deveriam estar com tanto medo que não avisariam a polícia. Afinal, nenhuma delas tinha a ficha completamente limpa, eram adolescentes “soltas no mundo”, vivendo seus dias de rebeldia como se tudo fosse acabar amanhã.

Estava realmente perdida. Seu estômago se embrulhou ainda mais quando pensou que aquele homem poderia voltar para saciar-se mais um pouco. Afinal, se ele não a quisesse mais, ela estaria em liberdade a esta hora.

Seus olhos começavam a acostumar-se com a escuridão, e agora ela percebia que o lugar onde estava era um pequeno quarto sujo e com venezianas apertadas que não deixavam passar muita luz. Não havia cama lá, nem nada, e ela pensou como aquele enorme homem havia conseguido entrar naquele cubículo pequeno e sujo. Talvez ele só a tivesse jogado ali depois, para morrer de fome, enquanto procurava outra vítima qualquer.

Neste momento, ela escuta um ruído alto, perto. A porta se escancara de repente, e ela vê surgir um garoto, magro e alto, com a aparência de, no máximo, 17 anos.

_Me desculpa por isto_ dia o rapaz, que, surpreendentemente, tem uma voz fina e parece incapaz de fazer mal a uma mosca. _Meu patrão tem impulsos desvairados, e não consegue ser contrariado. Venha se limpar e irá para casa, ele saiu e darei um jeito de tirar você daqui._ disse, estendendo a mão fina e branca a ela.

Alice aceitou de bom grado o convite, afinal, ela estava em uma situação que dificilmente poderia piorar, o que tinha a perder? E viu-se sendo conduzida por um pátio comprido e muito bem cuidado, onde o quarto pequeno e opressor que estava era somente um pequeno detalhe que sujava o gramado. Uma casa enorme erguia-se a sua frente, majestosa e branca como um hospital particular, ou um templo de religiões que ela não sabia o nome.

Para sua surpresa, o criado levou-a para dentro da casa, passando pela cozinha onda havia três mulheres cozinhando, costurando e assistindo uma tv minúscula que ficava tão alta que a mulher que se ocupava desta tarefa mantinha o pescoço apoiado no encosto da cadeira, para evitar dores. As mulheres olharam para ela com nojo e desprezo quando ela entrou, talvez, pensou ela, porque deveria estar imunda, manchada de sangue que o dono daquela casa havia lhe tirado.

_Não ligue para elas_ o rapaz lhe falava, enquanto eles saíam da cozinha em direção ao saguão mais formal que ela já havia visto._ Odeiam quando seu marido traz uma desconhecida para casa, quer a moça tenha vindo de bom grado, ou tenha sido arrastada, como você. Sentem-se ultrajadas por não conseguirem mais satisfazer o patrão.

_Todas elas são esposas Dele?_ espantou-se ela, pensando que deveriam ser muçulmanas, para ter os costumes que tinham.

_Elas e mais cinco, todas vivendo aqui, com ele, nenhuma com filhos. São para cozinhar e fazer todas as vontades dele. E, principalmente, para o sexo.

Começava a ficar mais assustada ainda, com medo do “patrão” chegar em casa quando ela ainda estava lá. Com medo de ser forçada a ser a nova esposa daquele homem desprezível e nojento. Mas, interrompendo seus pensamentos, o empregado abre uma porta, revelando um lustroso banheiro, branco como o resto da casa. Roupas esperavam por ela sobre a pia, e toalhas brancas e felpudas descansavam sobre o box.

_Tome seu banho, eu a levarei para casa. Espero que você esteja bem o suficiente para não precisar de um médico. Entenda, seria melhor para todos, inclusive para você, que não contasse a ninguém. O patrão tem influência, nunca seria preso nem processado, e ainda por cima, iria atrás de você, e a faria ficar de boca fechada. E, claro, cortaria minha garganta, por eu não ter conseguido te convencer a ficar quieta...

Fechando a porta as suas costas, o rapaz saiu, deixando-a sozinha e mais apavorada do que estava ao descobrir o sangue que agora secara, na parte de dentro de suas pernas.

Tratou de tomar logo o banho, o mais rápido possível. Não aguentava mais ficar naquela casa, lembrar daquilo, tinha medo de tudo o que estava ao seu redor.

20 minutos depois de ser deixada só, no banheiro, ela desceu as escadas, surpreendendo o rapaz a esperando no saguão, pronto para lhe levar para casa.

_Isto deve ser seu_ disse ele, entregando à ela seus pertences (um celular sem bateria e uma carteira praticamente vazia). _Vamos logo.

Saíram para a frente da casa, onde o motorista os esperava com o carro. Era incrível como todos a olhavam com pena e compaixão_ tirando, claro, as esposas, que deveriam saber bem o que era passar por aquilo, até mais que ela._ como se até mesmo os vizinhos soubessem o que haviam feito com ela.

Alice entrou no carro, logo atrás do empregado. Antes de perceber, estava em casa, sem saber se cochilara ou entrara em um estado de transe, e nem como o motorista sabia onde ela morava. E nunca ficou sabendo.

As amigas nunca mais falaram sobre isto, ela nunca mais viu nem o homem, nem o empregado, e, alguns anos depois, ainda se perguntava se tudo aquilo não havia passado de um simples sonho.

Pressa

Era um dia quente, já no fim do verão. O calor a incomodava um pouco, mas era um compromisso urgente e inadiável, ela não poderia chegar atrasada, por isso caminhava rápido. Sua camiseta já grudava ao corpo nas costas, e os cabelos estavam encharcados na nuca.

O dia estava, sem exageros, lindo. O jeito como o sol batia nas folhas das árvores faria qualquer um parar, boquiaberto. As sombras na estrada e os campos à direita fariam qualquer um suspirar e agradecer por poder estar ali e ver aquilo tudo. Qualquer um, menos a menina que quase corria para chegar a um destino desconhecido aos que a observavam.

Destacando-se na paisagem tão bonita, um homem cambaleava. Não estava mal vestido, na verdade parecia ter saído de seu próprio casamento. Ele se debruçava nas lixeiras das ruas, tentando recuperar o equilíbrio, com uma expressão tão triste quanto a sujeira grudada nas vestes chiques poderia sugerir.

Mas ela não notou. Não notou a tristeza do homem, nem a beleza da paisagem, nem o riso das crianças que brincavam por perto, nem o vento refrescante que soprava. Ela mal notava o calor. Precisava chegar cedo, precisava ir rápido.

Ela não notou o caminhão que vinha em sua direção, acelerado demais para parar.

Ela não notou o homem, que gritava para avisar.

Ela não notou quando as crianças pararam de rir, nem quando o sol parou de brilhar. Ela não notou quando tudo silenciou, nem quando tudo escureceu. Ela não notou.

Ela só queria chegar logo.

Aqui

Aqui
onde homens
são homens de verdade,
e mulheres
gentis, guerreiras e fiéis.

e o gaúcho,
enrolando seu fumo
e passando seu mate
é feliz.

Aqui,
como tantas e tantas famílias
e outras tantas
e tantas histórias.

e a grama
que cresce e faz barulho
é mais verde
e mais verdadeira.

Aqui
onde tudo é mais carnal
braçal e humano,
menos eletrônico
que fora desse fim-de-mundo,
que eu chamo, paraíso.

Só espero por ti.

Sentada sozinha,
através da fumaça
e do cheiro espesso
de álcool e cigarros.

O tempo passa devagar
enquanto olho a porta,
esperando que você passe por ela.

A luz baixa
me cega agora,
e a música alta
confunde todos os meus sentidos.

E eu só penso
naquele tempo
e naquela música
que desde sempre, é meu som preferido.

As horas continuam,
se arrastam
através das minhas mágoas antigas
e eu só espero por você.

Minha bebida acabou
e as desculpas, e as mentiras,
acabaram com ela.

Onde está meu disco preferido?
Onde eu estou?